Um manifesto dos ditos tempos modernos
Esta deveria ser uma ocasião especial, um dia de celebração do que há de mais belo neste mundo: a maternidade e a família.
No entanto *spoiler alert* hoje vou trazer este tema com alguma indignação. Não são palavras que normalmente se conectem – mãe e indignação – mas desta vez não quis ser forte e disfarçar ternuras face a este dia celebrado por milhões de filhos, mães, pais…
Perdoem-me desde já o mau-humor, o pessimismo e a rabugice. Não é esta a minha linha de escrita. Mas aqui vai…
Que c**** de mundo é este em que se diabolizou os conceitos de mãe, filho, bebé, criança, maternidade e família? Em que m**** de mundo vivemos em que as figuras maternas e crianças são vistos como empecilhos sociais?
Desde quando é que é aceite por maioria e INCLUSIVAMENTE mães e pais, o desprezo, o terror e quase intolerância emocional a crianças e mulheres que desejam ser mães? Ou que estão a caminho de? Ou que já são?
Já acreditei mais na narrativa “Portugal é um país com uma péssima taxa de natalidade, precisa de reforçar os apoios”. Concordo em inteiro que os apoios e incentivos à natalidade em Portugal são vergonhosos em quase todas as suas frentes, mas há algo muito superior que está a inspirar as mulheres e homens à escolha de não ter filhos.
É uma crescente preocupação mundial em países desenvolvidos. Falamos de uma quebra média de 5 pontos percentuais em 42 anos (1980-2022). Portugal contava com uma taxa bruta de natalidade de 16,2% em 1980, pelo que em 2022 se verifica menos de metade – 8% – dados em Pordata. Se considerarmos países altamente desenvolvidos, com inúmeros incentivos à natalidade (Suécia, Dinamarca, Noruega), estamos perante cenários muito semelhantes.
Então quais os principais fatores que influenciaram este abate drástico na natalidade?
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Mudanças nos padrões de família: Mudanças nas atitudes em relação ao significado e prática do casamento, ao papel das mulheres na sociedade e às pressões económicas.
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Aumento da idade média do primeiro filho: Muitos casais adiam a idade em que têm o primeiro filho devido a avanços na educação, carreira e estabilidade financeira. Isso pode levar a uma diminuição na taxa de fecundidade com o avanço da idade da mulher.
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Finanças e filhos: Ter filhos é sinónimo de investimento com uma séria análise de riscos financeiros em muitos países desenvolvidos, especialmente quando se considera o custo de creches, educação, habitação e outras despesas inerentes à criança. Esta é provavelmente a dificuldade mais facilmente identificada.
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Mudanças no mercado de trabalho e estilo de vida: As mulheres representam uma fatia absolutamente indispensável no mercado de trabalho e, com as exigências de uma economia globalizada, muitos casais enfrentam desafios para conciliar a vida profissional e a vida familiar. Isso pode levar a escolhas de vida que incluem ter menos filhos ou adiar a parentalidade.
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Mudanças culturais e sociais: Em muitas sociedades, os valores relativos à família e parentalidade estão a mudar. Ideais de sucesso e felicidade estão descentrados da criação de uma família, e mais focados na realização pessoal e profissional.
A distorção do outro
Eu arrisco-me a inferir que muito mais que dificuldades financeiras, estabilidade política ou coesão socioeconómica, estamos perante uma crise de valores.
Não é de todo conspirativo pensar que um avanço megalómano de tecnologia ao alcance do mais humilde humano num espaço de 3 décadas, veio modificar de um segundo para o outro a forma como interagimos com o próximo. Estamos perante uma distorção da perspetiva do outro (desde o estranho ao familiar) – fechámo-nos em nós próprios e avaliamos o mundo através de um pequeno ecrã luminoso.
Perdemos a confiança em nós próprios de improvisar um cumprimento e perdemos a confiança no outro em permiti-lo entrar na nossa vida além de uma conexão superficial numa rede social.
Como transladamos esta realidade para a noção de maternidade e família? Muito simples:
Perdemos a capacidade de criar laços biológicos.
Para todo o lado que olho, estamos em transição digital. Até na nossa composição. Os nossos filhos aprendem através de monitores, falamos através de monitores, conhecemo-nos através de monitores. Marcamos entrevistas online, falamos com médicos pelo telefone, validamos informação pessoal em caixas de bases de dados, consultamos apps para saber qual foi a última mama em que o bebé mamou…
Não, não estou a diabolizar a tecnologia. Estou a levantar o negativo que muitos já identificaram há muito mais tempo que eu, mas que a maioria continua cegamente a não contrariar em nome do progresso da humanidade.
Que progresso? Da humanidade?
A humanidade está a esvair-se. O que nos torna tão imperfeitos quanto belos, está a ser progressivamente corrigido. Este lado selvagem, o único lado que nos permite ser fervorosos, apaixonados, criativos, brincalhões, está a ser domado por ideologias de desenvolvimento da espécie.
Que desenvolvimento?Sociedades prósperas que nas próximas 4 ou 5 décadas não terão sustentabilidade económica em Segurança Social para garantir a sobrevivência de milhões de idosos (e tantos beneficiários desta instituição)?
Profecias anunciadas de pensões avaliadas em apenas 38% do último salário?
Uma massiva classe trabalhadora geriátrica obrigada ao matrimónio do “trabalhar até que a morte me pare”?
Que bela pintura! A “dignidade” do jovem adulto que se sobrepõem a um dos principais papéis da sociedade: a proteção do mais novo e do mais velho.
Uma classe ariana de adultos altamente funcionais que vivem em toxicodependência profissional. Inspiram ambições de pomposos cargos executivos de 5 palavras (senior master executive of external analysis) e expiram bafos de ansiolíticos e sorrisos falsos nas redes sociais.
É isto que a sociedade procura ser? É esta m**** de mundo que idealizamos?
Crianças – Exclusão social aceite
Um mundo miserável que já manifesta exclusão socialmente aprovada:
– hotéis e restaurantes onde não são permitidas crianças;
– uma aceitação aplaudida do “odeio crianças, só sabem chorar e causar distúrbios”;
– uma tolerância inquestionável da sexualização das crianças e jovens;
– conteúdo sexual adulto explícito e demonstrado em via pública em nome da “liberdade sexual do outro”;
– as boas-vindas celebradas ao pet-friendly e a necessidade quase segredada de criar o kids-friendly.
Mas…o…que…é…isto?
Como é que é possível alguém dizer-me: “podes vir ao meu casamento mas não podes trazer os teus filhos.” Infelizmente esta é uma das diversas expressões quotidianas do “crianças são apenas toleradas”:
– km de passeios e espaços públicos onde mal caminha confortavelmente uma mulher grávida quanto mais um carrinho de bebé;
– leis aprovadas por políticos locais que permitem o estacionamento de viaturas em passeios (Junta de Freguesia Belém) pondo em causa a segurança referida no ponto acima;
– passeios rebaixados ao nível da estrada em ruas de acesso a escolas, com um tráfego intenso de crianças e jovens, para “melhor fluir o trânsito”, pondo em causa a segurança de todos (ruas na Maia);
– parques urbanos com espaço equipado para atividades com cães mas sem parques infantis;
– cafés e restaurantes apinhados de mesas e cadeiras onde se torna impossível manobrar um carrinho de bebé (sem abordar sequer a questão das mobilidades reduzidas) e sem estruturas sanitárias adequadas a este público;
– barreiras burocráticas infindáveis para licenciamentos de creches que resultam numa corrida ao ouro na Califórnia…
– …mas “aberturas indiscriminadas de vagas em creches” que resultam na violação dos termos previstos no licenciamento, pondo em causa o bem-estar e a dignidade de milhares de crianças e bebés;
– leis laborais que ainda permitem a não renovação contratual de grávidas, puérperas ou lactantes; (não me venham dizer que não há formas de criar um sistema que garanta o sustento de uma mulher destes 3 estatutos previstos na lei e que permita as empresas atuarem legitima e agilmente perante a ausência desta trabalhadora)
– licenças de maternidade pagas a 100% de apenas 5 meses
– cortes de 75% em todas as prestações da licença de parentalidade ao requisitar extensão de 3 meses quando estamos perante um quadro gravíssimo de falta de vagas em creches (listas de espera que chegam até 2 anos para a admissão de uma criança);
– normalização de funções laborais nas mesmas condições até termo de gravidez;
– parques de estacionamento de supermercados que ainda não dispõem de lugares reservados a grávidas e portadores de crianças de colo, mas já equipados com lugares reservados com posto de carregamento de carros elétricos
E o preocupante não é vivermos num país em que esta marginalização não é abordada com seriedade política, mas vivermos numa sociedade em que não é prioritário lutar pela garantia dos direitos fundamentais da família.
É lamentável que a gravidez seja apenas publicitada – usada como um evento que gera dinheiro a hospitais privados quando o SNS não garante a SOBREVIVÊNCIA da mulher e do bebé. É revoltante, é asqueroso!
Mais hediondo ainda é que uma sociedade com indivíduos cada vez mais embriagados na sua missão de “desenvolvimento pessoal”, se abstenha de ações que defendam dois dos grupos mais vulneráveis de toda e qualquer sociedade, em todo e qualquer ponto deste planeta.
E isto é aceitável! Meu deus, como isto é aceitável e aplaudido! Como é evoluída a sociedade que inspira à emancipação máxima e esplendor profissionais, o prazer inegociável que temos que ter e os valores individuais invioláveis que têm que ser ouvidos…
À criança que não gosta de crianças:
Lamento, mas o que se pode dizer sobre um adulto que não consegue lidar com o comportamento naturalmente imprevisível e caótico de uma criança?
“Ai, eu não consigo conviver com crianças…!”
É outra criança. Porque só as crianças não têm as ferramentas sociais necessárias ao convívio com o próximo. Portanto, lamento, mas este adulto é adulto biologicamente, mas não é funcional. É uma criança em corpo grande que não aprendeu que o mundo tem mais pessoas à volta dele e esse mundo não funciona mediante as suas próprias regras, mas sob regras comuns que, mal ou bem, tentam estabelecer a liberdade de todos os indivíduos.
Um adulto que manifestamente não investe numa família porque não gosta de crianças acaba por ser um adulto responsável que faz um favor a todos. Ninguém quer este adulto responsável pela vida de uma criança.
Um adulto que indiscriminadamente repele crianças é um adulto que nasceu adulto. Foi parido por cesariana, aos seus 23 anos e, em vez de brincar com barbies e action man’s, comenta no Twitter, ouve música no Spotify e recebe 3 encomendas por semana da Amazon. Este adulto nunca foi criança.
O adulto que não gosta do adulto que gosta de crianças:

Este também é um subproduto do absurdo: o adulto que vê a sua liberdade condicionada por outros adultos que convivem com crianças e, pior, têm filhos.
O adulto que se sente desvalorizado face a direitos extraordinários de adultos com filhos, é um adulto altamente inseguro e frustrado. Muito observado em contextos profissionais.
– “Está grávida e acha que tem direito a faltar quando quer e lhe apetece!”
– “Gravidez não é doença!”
– “No meu tempo não haviam licenças e estou aqui.”
– “Licenças de um ano? Também eu gostava de ter essas férias!”
– “Vais acompanhar a tua mulher à ecografia? Mas afinal quem é que está grávido?”
– “Então mas não é a tua mulher que tem que ficar com o bebé?”
– “Pois, o teu filho está sempre doente…”
– “Também vou arranjar um filho para ter essas regalias todas.”
Do “Deus, família e pátria”, ao “Eu, o Eu próprio e o reino de Mim”
E como não podia deixar de ser, em poucos mais de 50 anos, a sociedade passou do “mãe parideira e pai burro de trabalho” para “mulher corporativa que congela óvulos e homem que não tem qualquer papel na sociedade a não ser de bicho-papão-misógino”. As crianças passaram de “possível força de trabalho iletrada a partir dos 6 anos” a “troféu de redes sociais criados dentro de gaiolas tecnológicas”.
Estes são os extremos opostos com um mediano grupo que, dentro dos seus tempos modernos, procuraram criar as gerações seguintes com margem para correção. E não, nenhuma geração foi ou será perfeita na forma como aborda a parentalidade. Jogamos ao arcade diário do “Quem quer ser o melhor pai?” e esse jogo nunca tem vencedores.
Mas o meu amor vai a todas as mães e as suas famílias…
Embora tenha descarregado toda a minha frustração fruto de uma sociedade muitas vezes criticada pelo seu egoísmo e falta de valorização da mãe e da família, há motivos para otimismo. Cada vez mais, vemos iniciativas que procuram resgatar os laços familiares e que reconhecem o papel fundamental da instituição Família na construção de uma sociedade mais saudável, cooperante e compassiva.
Há várias tentativas desesperadas de manter vivas tradições que enalteçam o papel da mãe, do pai, dos avós, dos filhos – mas já assistimos à morte destas celebrações em escolas públicas (sim, há escolas que não estão a celebrar estes dias especiais porque há crianças que não têm mãe e pai e podem ser magoadas neste processo. Há mesmo escolas que estão a fazer isto!)
À medida que tomamos consciência dos impactos positivos do apoio em comunidade e do cuidado familiar, podemos nutrir uma cultura que valorize e celebre o amor incondicional único das mães e dos pais que lutam diariamente por uma utopia de um mundo bom para os seus filhos. Essa louca esperança dos pais que, com esforços contínuos, possam vir a cultivar uma sociedade mais solidária, onde o egoísmo dê lugar à empatia e o bom senso suplante o luxo dos individualistas.
Neste dia tão lindo, que só uma Mãe consegue ver a sua beleza, desejo a todas estas guerreiras força para continuarem a beber deste néctar virgem de amor que só um filho lhes pode dar.
Obrigada pela tua paciência para este relambório! Vai abraçar o teu filho que eu vou abraçar a minha.
Sara – Slow Living Portugal