
“Olha, a rapariga passou-se…”
Quando comecei a escrever este blog, cheia de sonhos slow e positivismo digital, acreditei profundamente que se começasse a a vestir vestidos de linho, reciclar, fazer bolos caseiros, beber muito chá, praticar algum yoga, acordar de sorriso no rosto e preparar pequenos almoços biológicos para a família durante a semana…iria atingir o êxtase universal de uma vida tranquila e consciente.
Um género de Kung Fu Panda; que de um mamífero com todas as características opostas ao perfil de mestre saísse a resolução do equilíbrio do planeta. De uma mulher igualmente plus size, saísse uma inspiração para as massas com respostas para toda e qualquer toxicidade do mundo moderno.
Mas…só que não! (e eu sabia disso, calma!)
A Ficção do Conteúdo nas Redes
Todos sabemos porque consumimos redes sociais. Eu consumo, tu consomes, e iremos continuar a consumir.
É um mundo encantado de coisas que queremos ver, construído à volta dos nossos interesses, e fora dessa bolha existe apenas aquilo que o algoritmo quer que vejamos. (Sim, uma ou outra teoria da conspiração acaba por ser verdadeira.)
Sabemos que a inspiração que procuramos nas redes (seja maquilhagem, fitness, mindfulness, gurus de marketing, comentário político, e o resto do infinito) é ficção. E que os humanos que lá estão não são humanos: são fragmentos da imaginação de humanos reais aliados ao interesse da nossa própria fome criativa.
E o que consumimos é ficção. E sabemos que é ficção. Procuramo-la ativamente. Procuramos a irrealidade porque o escape está lá. Da mesma forma que consumimos cinema, televisão, teatro, literatura, música, e até artes visuais, consumimos o ecrã luminoso para nos trazer uma maior proximidade entre o mundano que vivemos e a ficção que idolatramos.
A Ilusão Maravilhosa do #slowlife #slowcore #romaticize
É bom! Na realidade é ótimo consumir estes ideais de vida campestre, doméstica, orgânica, consciente… É espetacular! Eu AMO!
Adoro os vídeos com câmaras de filmar (não as lentes do telemóvel), as paletes bege, as câmaras lentas e os close-up!
E adorava poder fazer isso. Gostaria de investir numa câmara de filmar e ter um cameraman talentoso para a filmagem. Mas o dinheiro só vai para o meu essencial e o meu marido tem muitas aptidões mas o audiovisual não é uma delas.
Mas a ilusão é de facto lindíssima e, admito, pode ser praticada até um certo ponto.
Mas conseguimos todos ter panquecas frescas ao pequeno almoço?
- Podemos todos ter rotinas de beleza de 20min só para o rosto?
- Podemos todos filmar todos as nossas movimentações diárias e fazer reels disso?
- Podemos todos ter casas de design biofílico?
- Ou patrocínios de marcas?
- Podemos todos colocar os miúdos em escolas montessori?
- Podemos todos comprar roupa de fibra de algodão egípcio de 1000 fios?
- Podemos todos conduzir um carro elétrico? Ou apanhar o metro/autocarros sem ser considerado gado humano?
- Podemos todos ser muito serenos e nunca ter falhas humanas?
A Pessoa Menos Slow do Mundo
Presente! Sou eu!✋
Um querido amigo disse-me isto há uns tempos: “Sara, tu és a pessoa menos slow que eu conheço!”
E nenhuma verdade tão verdadeira alguma vez foi proferida!
Como é que uma pessoa que tem dificuldades de organização temporal (sou capaz de acordar às 06h da manhã e ainda assim chegar atrasada ao expediente que começou às 09h), que é impaciente, que se irrita facilmente, que fala alto, que é expansiva, que usa calão, que frequentemente tem a casa desarrumada, que não sabe cozinhar (exceto doces, sou boa doceira), que diariamente conduz um carro com uma certa idade e 1600cc que gasta 8lt/100km, irá, ALGUMA VEZ NA VIDA, ser blogger sobre slow living?
Mas é sobre todos estes motivos que preciso de me aproximar da utopia de uma vida slow. Porque a vida urbana é difícil, a vida de mãe e pai é difícil, a vida de quem trabalha diariamente em stress é difícil, a vida de quem enfrenta o trânsito todos os dias é difícil. É difícil viver em Portugal, é difícil ter calma, é difícil ser paciente, é difícil conquistar algo bonito e com profundidade.
Ser Slow no Caos
Acredito honestamente que é nestes desafios e provas diários onde encontramos este modo de vida mais quieto: nos momentos de stress e caos.
- É nas manhãs apressadas onde encontramos o motivo para desacelerar;
- É nas refeições processadas onde percebemos que a comida é mais que nutrição;
- É no trabalho sedentário de 8/9/10h que entendemos a importância do movimento;
- É nos telemóveis ligados enquanto estamos no sofá que reconhecemos a ausência do toque e da conversa;
- É nas pilhas de roupa por lavar que aprendemos a respeitar o santuário que é a nossa casa.
Os conceitos de vida não são absolutos nem isolados, são relacionais – definem-se através do confronto com os seus opostos. Segundo Nietzsche1, é por meio do confronto direto com a dor que desenvolvemos a força necessária para enfrentar os desafios.
É por meio do caos que sabemos que encontramos a tranquilidade.
Espero que encontres sempre a tua.
Obrigada por estares desse lado,
Sara – Slow Living Portugal
1 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. 1878.





